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quinta-feira, 9 de julho de 2020

Mundo bate recorde de produção de lixo eletrônico


quinta-feira, 25 de junho de 2020

É alto o risco de surgir uma nova pandemia a partir da Amazônia, avalia cientista



Carlos Nobre, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza, afirma que desmatamento e perturbação da vida selvagem são alguns dos elementos que originaram o novo coronavírus

Por Renato Santana

Fogo, desmatamento, fragmentação florestal, perturbação da vida selvagem, aumento do fluxo de humanos (garimpeiros, madeireiros, desmatadores, etc) entre áreas perturbadas de floresta e concentrações urbanas são elementos que criam sérias condições para o surgimento de pandemias a partir da Amazônia.

“Os fatores de risco estão todos lá. Não ter surgido uma epidemia massiva na região da floresta até hoje é pura sorte”, avalia Carlos Nobre, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN) e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). “A falta de fiscalização e de políticas públicas contribuem para o surgimento de doenças, pois favorecem a retirada de animais de seu habitat e o contato não planejado com humanos”, explica.

Desde que os primeiros casos do novo coronavírus começaram a surgir, muito tem se discutido sobre a origem da pandemia. Um estudo publicado na revista Nature Medicine aponta que são altas as probabilidades de que a doença tenha relação com a transmissão animal. Até o momento, suspeita-se que os primeiros casos na Ásia tenham sido transmitidos a partir de morcegos ou pangolins.

O consumo de carne silvestre é um hábito bastante presente também no Brasil. Estudo publicado na Revista de Ciências da Saúde na Amazônia apontou que, no município de Rio Branco (AC), 78% dos entrevistados disseram consumir este tipo de produto. “A paca (Cuniculus paca) e o tatu (Gênero Euphractus) são as espécies mais procuradas”, diz a pesquisa, segundo a qual “pratos preparados à base de carnes silvestres em restaurantes apresentaram uma aceitabilidade de 100%”.

E não é apenas no Acre. No estado do Amazonas, o consumo de tartarugas-da-amazônia tem colocado a espécies em situação de vulnerabilidade. A alta demanda pela carne desses animais estimula a caça e o tráfico ilegais, criando uma crise de saúde pública, uma vez que boa parte das vezes o produto não tem origem adequada.

“Estamos no século das zoonoses. A cada quatro meses, a ciência identifica um microrganismo, bactéria, vírus ou protozoário que vira patógeno no corpo humano. A maioria, felizmente, não se propaga. Mas outros têm grande capacidade de contágio, como o novo coronavírus”, explica Nobre.

Para Malu Nunes, mestre em Conservação da Natureza e Ciências Florestais e diretora executiva da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, é preciso garantir formas eficazes de proteger a floresta. “A sociedade como um todo precisa entender que a degradação e o tráfico de animais estão diretamente relacionados à propagação de doenças. É uma questão de saúde pública. Há bem pouco tempo, ninguém imaginaria a humanidade passando por uma pandemia tão grave e com consequências tão sérias. Se não houver meios que impeçam o desmatamento e outros problemas ambientais, será cada vez mais comum termos de lidar com este e outros tipos de consequências, igualmente perturbadores”, diz Malu.

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 24/06/2020

terça-feira, 23 de junho de 2020

Commodities agrícolas foram as grandes responsáveis por incêndios na Amazônia, segundo estudo


Pesquisa aponta frigoríficos e produtores de soja com maior risco de serem associados a queimadas
Commodities agrícolas foram as grandes responsáveis por incêndios na Amazônia, segundo estudo que cruza dados da Nasa com cadeias de suprimentos das empresas

por Marcelo Coppola*

Em agosto do ano passado, imagens dos incêndios na Amazônia atraíram a atenção do mundo todo. Chefes de governo, organizações multilaterais, ambientalistas e celebridades manifestaram preocupação com o futuro da maior floresta tropical do planeta. “A Amazônia precisa ser protegida”, disse António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). “Nossa guerra contra a natureza precisa acabar”, tuitou a ativista Greta Thunberg.

O tamanho real do desastre ambiental só foi conhecido em janeiro, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apresentou um balanço final dos incêndios que atingiram a floresta. Em 12 meses, ocorreram 89 mil focos de incêndio na região, um aumento de 30% em relação a 2018. Um crescimento preocupante, apesar de o número ter ficado abaixo da série histórica (109 mil).

No auge da crise, o presidente Jair Bolsonaro lançou suspeita sobre ONGs que atuam na região. E o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) culpou a temporada mais seca, quando, na verdade, choveu mais do que no ano anterior. Pesquisadores do bioma atribuem os incêndios, porém, a outros fatores.

A especulação fundiária é hoje um dos grandes vilões da floresta amazônica. Trata-se de um negócio de alta rentabilidade que envolve a invasão de terras públicas, a derrubada e retirada das árvores mais valiosas e depois, por meio de correntes presas a tratores, a derrubada da vegetação mais baixa. Passadas algumas semanas, período necessário para a secagem do material destruído, basta pôr fogo ao que antes era uma floresta. É hora então de espalhar as sementes para criar o pasto, à espera do comprador.

“É dinheiro fácil. O invasor de terra pública que gasta R?$ 1 mil para derrubar e colocar fogo em um hectare consegue vender o mesmo hectare por até R$ 2,7 mil”, afirma Raoni Rajão, pesquisador da Amazônia e professor do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). As queimadas costumam ser feitas no período mais seco da Amazônia, entre julho e outubro.

A floresta não queima apenas por conta da grilagem de terras. Para ampliar o pasto, muitos produtores põem fogo em áreas contíguas às suas propriedades ou destroem a mata existente dentro de suas próprias fazendas. O Código Florestal estabelece que, nos imóveis localizados na Amazônia Legal, 80% da mata nativa deve ser preservada. Há ainda as queimadas feitas por agricultores, indígenas e povos tradicionais com o propósito de renovar o pasto ou a área de cultivo, uma prática que tem impacto bem menor sobre o bioma, mas que pode sair do controle e provocar destruição em grandes áreas.

Levantamento realizado pelo MapBiomas — iniciativa que reúne universidades, organizações sociais e empresas de tecnologia – revela a dimensão das práticas criminosas citadas acima. De acordo com o estudo, realizado a partir do cruzamento de imagens de satélites com o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e outros bancos de dados oficiais, 99% do desmatamento realizado no Brasil no ano passado foi ilegal. Dos 12 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa destruída, a maior parte está localizada no Cerrado e na Amazônia.

Pecuária e soja

Um estudo recente realizado pela Chain Reaction Research (CRR) [http://chainreactionresearch.com/wp-content/uploads/2020/05/Deforestation-driven-fires-in-Brazil-Indonesia.pdf] , uma coalizão de consultorias ambientais europeias e americanas, ajuda a entender um pouco mais os interesses por trás dos incêndios ocorridos no ano passado na Amazônia. Os pesquisadores cruzaram imagens dos incêndios, feitas por satélites da Nasa, com a localização dos maiores frigoríficos da região, como JBS e Marfrig, e grandes silos de soja, controlados por gigantes como Bunge e Cargill.

O sistema de monitoramento da agência espacial americana detectou 417 mil focos de fogo nas “zonas potenciais de compra” da JBS e da Marfrig de julho a outubro do ano passado, um número que representa 42% de todos os incêndios ocorridos no Brasil no período – foram 981 mil, segundo a Nasa. Os focos de incêndios no entorno das duas empresas representam quase a metade (47%) do total detectado (885 mil) nas proximidades dos dez maiores frigoríficos da região.

As zonas potenciais de compra dos matadouros foram estabelecidas pelo Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) em 2017, a partir de entrevistas feitas com 157 frigoríficos da Amazônia Legal. Entre outras informações, essas empresas revelaram a distância máxima que percorrem para comprar os animais para abate. Os frigoríficos maiores uma distância máxima de 360 km a partir de suas instalações. Os menores, que têm certificados para atuar apenas dentro do Estado, compram gado a uma distância máxima de 153 km.

No caso da soja, a Chain Reaction Research estabeleceu um raio de 25 km a partir dos silos das maiores empresas do setor como área de sua cadeia de suprimentos. O levantamento indicou que as queimadas ocorridas no entorno da Bunge e da Cargill (39,9 mil) superaram a soma dos focos de incêndio registrados nas proximidades dos outros oito maiores traders do setor.

O levantamento não faz nenhuma acusação a esses conglomerados. “O objetivo foi mostrar a ocorrência de uma enorme quantidade de incêndios nas proximidades dessas empresas, o que não implica o envolvimento direto delas com essas práticas. Mas faz com que tenham de resolver as suspeitas que recaem sobre sua cadeia de suprimentos”, diz Marco Túlio Garcia, pesquisador da Aidenviroment e um dos autores do estudo, que analisou também os incêndios na Indonésia, onde as suspeitas recaem sobre a produção de óleo de palma.

“O desmatamento na Amazônia, causa principal dos incêndios, traz riscos a essas empresas. Nos últimos anos, os grandes investidores internacionais colocaram essas questões no centro de sua pauta. Elas não estão mais restritas a debates entre ambientalistas”, completa Tim Steinweg, coordenador de pesquisa da Chain Reaction Research. Um exemplo dessa preocupação do mercado global foi dado em dezembro último pela Nestlé, quando suspendeu suas compras de soja da Cargill, por suspeita de que o produto tenha origem em áreas desmatadas da Amazônia.

Reportagem recente do jornal The Guardian revelou que bancos e outras instituições financeiras britânicas investiram nos últimos anos mais de US? 2 bilhões nas principais empresas brasileiras de carne que atuam na Amazônia. Por conta do desmatamento, estudam reconsiderar seu apoio se essas companhias não mostrarem progressos no rastreamento de seus fornecedores. Gigantes do setor de alimentos manifestam a mesma preocupação. Em dezembro, a Nestlé suspendeu suas compras de soja da Cargill, por suspeita de que o produto tenha origem em áreas desmatadas da floresta.

Estudiosos avaliam que o setor de pecuária traz hoje mais riscos para a Amazônia do que a indústria da soja, que hoje ameaça mais o Cerrado. A imagem dos produtores do grão melhorou a partir do pacto, batizado de “moratória da soja”, firmado em 2006 com entidades ambientalistas, pelo qual se comprometeram a não comprar a commodity de áreas desmatadas no bioma. O acordo contou depois com o apoio do governo federal.

O setor pecuário carrega irregularidades dos mais variados tipos. Entre elas, animais que nascem em áreas desmatadas, muitas vezes embargadas pelo Ibama, e que são vendidos para pequenos e médios produtores. Depois da engorda, são comprados legalmente pelos grandes frigoríficos. Os sistemas de controle não conseguem pegar o vício de origem. “É uma cadeia muito complexa. Não existe um sistema que permita rastrear cada animal desde o início, e os frigoríficos não parecem interessados em implantar um monitoramento desse tipo”, lamenta Ritaumaria Pereira, diretora executiva do Imazon. “Há um ditado na região que traduz essa triste realidade. Boi não morre de velho na Amazônia. Sempre vai ter alguém para comprá-lo, independentemente de onde venha”, afirma a engenheira agrônoma.

Menos floresta, menos chuva

Para muitos especialistas, falta visão estratégica ao governo brasileiro e aos produtores rurais em relação à Amazônia, o principal ativo ambiental do país. Paulo Moutinho, pesquisador sênior do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), lembra que a floresta funciona como uma espécie de bomba de vapor d’água que, transportado por meio dos chamados rios voadores, irriga o Centro-Oeste e o Centro-Sul do Brasil. A destruição coloca em risco esse sistema de irrigação. “Ao desmatar, é como se fizéssemos um furo nesse regador, que garante o sucesso de boa parte da produção agrícola brasileira.” De acordo com estudo da Agência Nacional de Águas (ANA) e do IBGE, 92,5% da água consumida pela agricultura brasileira vêm das chuvas. Apenas 7,5% são de sistemas de irrigação.

Os riscos à floresta amazônica são reais, de acordo os cientistas. O bioma já perdeu cerca de 17% (dados de 2017) de sua vegetação nativa. Se esse percentual superar 20%/25%, corre grande risco de entrar em um processo de savanização, segundo estudo publicado há dois anos pelo pesquisador brasileiro Carlos Nobre e pelo americano Thomas Lovejoy. Na década anterior, os mesmos pesquisadores falavam que o tipping point (ponto sem volta) aconteceria quando fossem atingidos os 40% de destruição. Refizeram os cálculos em razão da aliança mortal entre desmatamento, incêndios e mudança climática.

Especialistas ouvidos pela reportagem acreditam que não é preciso destruir nenhum hectare a mais para aumentar a produção agropecuária. Bastaria aproveitar os 12 milhões de hectares que foram desmatados e abandonados na Amazônia, áreas que poderiam ser recuperadas. “Você tem muitas áreas que estão abertas e, com incentivo adequado, poderiam ser exploradas”, afirma Paulo Moutinho, do IPAM. Ritaumaria Pereira, do Imazon, concorda: “Além da regeneração dessas áreas, precisamos de políticas públicas para incentivar o aumento da produtividade da pecuária, que hoje é muito baixa, cerca de um animal por hectare”.

O que dizem as empresas

Em nota, a JBS reclama do fato de não ter sido procurada pelos pesquisadores da Chain Reaction Research. A empresa questiona os critérios técnicos do estudo e diz adotar uma abordagem de tolerância zero em relação ao desmatamento em toda a sua cadeia de fornecimento. “Todos as fazendas fornecedoras de gado da JBS na região amazônica são monitoradas por meio de imagens de satélite e dados georreferenciados da propriedade. Portanto, fornecedores que utilizaram fogo para desmatar a floresta serão detectados pelo sistema de monitoramento da Companhia e bloqueados para compra de gado.”

A Marfrig afirmou que adota “uma rígida política de compra de animais, bem como um protocolo com critérios e procedimentos que são pré-requisitos para a homologação de fornecedores”. A empresa diz manter uma plataforma que monitora, por meio de um sistema de georreferenciamento e geomonitoramento socioambientais, todos os seus fornecedores. A ferramenta cruza os dados georreferenciados e documentos das fazendas com informações públicas oficiais para identificar potenciais não conformidades, “coibindo que a matéria-prima seja oriunda de fazendas que produzam carne em áreas de desmatamento ou embargadas, sobrepostas a unidades de conservação ou terras indígenas, ou mesmo que utilizem ‘trabalho escravo”’.

A Bunge disse que está comprometida com uma cadeia de suprimentos livre de desmatamento e que condena qualquer uso do fogo para o desflorestamento. “A empresa mantém rigoroso controle sobre critérios socioambientais em suas operações em todo o Brasil. As ações incluem verificações diárias às listas públicas de não conformidades do Ibama e do Ministério do Trabalho e Emprego, além da checagem de outros requisitos legais, e bloqueio imediato de qualquer negociação comercial, em caso de desconformidade”. De acordo com a nota, “a empresa também é signatária da Moratória da Soja, compromisso reconhecido mundialmente que proíbe a compra de soja cultivada em áreas desmatadas após 2008 na Amazônia, e do Protocolo Verde de Grãos do Pará, uma iniciativa conjunta com o Ministério Público Federal (MPF), que estabelece critérios para transações comerciais com foco em evitar a comercialização de grãos oriundos de áreas ilegalmente desmatadas”.

A Cargill afirmou que está comprometida com a proteção das florestas e da vegetação nativa de maneiras que sejam economicamente viáveis para os agricultores. “O desmatamento ilegal e incêndios deliberados na Amazônia são inaceitáveis e, juntamente com outras empresas do setor, continuaremos a fazer parcerias com comunidades locais, agricultores, governos, ONGs e nossos clientes para encontrarmos soluções que preservem esse importante ecossistema”, afirma a nota da Cargill. “Fazemos parte da Moratória da Soja na Amazônia desde 2006, quando assinamos um acordo voluntário com organizações industriais e ambientais de não comprar soja de terras que foram desmatadas após 2008 neste bioma. Esse esforço contribuiu para o declínio de 80% no desmatamento na Amazônia na última década e foi estendido indefinidamente em 2016.”

* Marcelo Coppola é jornalista e foi editor na revista Época. Trabalhou também no jornal Folha de S. Paulo e na revista Veja.

Colaboração de Clóvis Saint-Clair, Diálogo Brasil

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 23/06/2020

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Multinacionais vendem no Brasil toneladas de agrotóxicos ‘altamente perigosos’ proibidos em seus países

agrotóxicos
Imagem: ENSP


Estudos mostram que as empresas Basf, Bayer e Syngenta aproveitam da legislação permissiva para faturar alto vendendo pesticidas altamente perigosos que já foram banidos na Europa

Por Pedro Grigori, Agência Pública/Repórter Brasil


Além de ser o maior consumidor de agrotóxico no mundo, estudos mostram que a legislação permissiva torna o Brasil o pote de ouro das principais companhias agroquímicas do planeta. Dois trabalhos publicados no último ano revelaram que as multinacionais Bayer, Basf e Syngenta encontram no Brasil um dos seus principais mercados, já que conseguem colocar nas prateleiras produtos proibidos de serem comercializados até mesmo na União Europeia (UE), onde ficam suas sedes.

O grau de toxicidade desses pesticidas é preocupante: 22 deles foram classificados pela Rede de Ação contra Agrotóxicos (PAN, na sigla em inglês) como altamente perigosos (highly hazardous pesticides, na sigla em inglês, ou HHPs).Essa classificação é feita a partir de critérios desenvolvidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) por serem tóxicos para o sistema reprodutivo, poderem causar alterações no DNA, por serem cancerígenos ou fatais para abelhas e outros polinizadores.

Mesmo banidos no exterior, esses produtos rendem milhões no Brasil. Foram vendidas mais de 63 mil toneladas em 2018 de apenas 10 desses 22 agrotóxicos, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Os outros 12 produtos não entraram no relatório por questões de sigilo comercial, o Ibama divulga apenas dados sobre ingredientes ativos que têm três ou mais empresas fabricantes. O relatório também não especifica quantos desses agrotóxicos vendidos eram das empresas Bayer, Syngenta e Basf.
Quem são as empresas?

Em 2017, o mercado mundial de agrotóxicos movimentou US$ 34,4 bilhões, de acordo com a FAO/ONU. E é um setor aglomerado cada vez mais nas mãos de poucas empresas. Com sede na Suíça, a Syngenta faz parte do grupo ChemChina, líder mundial do setor. Em segundo lugar fica a empresa alemã Bayer, que apresentou grande crescimento em 2018 após adquirir a Monsanto, produtora do herbicida Round Up, à base de glifosato, o agrotóxico mais vendido do mundo. O pódio fica completo com a alemã Basf. As três empresas juntas controlam 54,7% de todo setor de produção de agroquímicos global.







Em 2018, 36,7% dos ingredientes ativos vendidos pela Bayer e 24,9% pela Basf no mundo todo eram altamente perigosos, de acordo com a definição da PAN.

As informações constam no estudo “Agrotóxicos Perigosos. Bayer e Basf – um negócio global com dois pesos e duas medidas”. O relatório, produzido pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos, a rede INKOTA, a Fundação Rosa Luxemburgo, a MISEREOR e a organização sul-africana Khanyisa, traz dados das vendas das empresas alemãs em países em desenvolvimento.

Segundo o estudo, os agrotóxicos altamente perigosos têm maior facilidade de chegar ao mercado de países do Sul global devido aos processos mais flexíveis de registro de agrotóxicos. Um exemplo é o Brasil: 44% das substâncias registradas aqui são proibidas na União Europeia, mostrou um relatório de julho do ano passado feito pelo ex-presidente da Associação Brasileira da Reforma Agrária (ABRA), Gerson Teixeira Alan Tygel, porta-voz da Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, explica que o ponto de partida do estudo foi a Alemanha. “A Alemanha é o segundo maior exportador de agrotóxicos do mundo, por conta dessas duas grandes empresas produtoras. A Alemanha exporta 233 ingredientes ativos. Desses, nove são banidos na União Europeia, mas produzidos dentro da própria Alemanha e depois exportados”, conta. “Dos 233 ingredientes ativos exportados pela Alemanha, 62 são considerados altamente perigosos”, completa.

O estudo mostra que a metade dos 24 ingredientes vendidos no Brasil pela Bayer e Basf são altamente perigosos.

Um desses é o Fipronil, um ingrediente ativo utilizado em inseticidas vendidos pela Basf. O produto entrou na lista da PAN por ser fatal para abelhas. Nos anos 90, foi culpado por uma morte maciça de abelhas na França. Em 2017, milhões de ovos de galinha acabaram contaminados por Fipronil na Bélgica e na Holanda. No mesmo ano, o produto foi banido de toda a União Europeia por representar “um alto risco agudo para as abelhas quando usado para o tratamento de sementes de milho”, segundo a Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA).

No Brasil, o inseticida foi apontado por apicultores como o principal responsável pela morte de mais de 500 milhões de abelhas entre 2018 e 2019. Só em 2018, segundo o Ibama, foram comercializados 1,6 mil toneladas do pesticida no país. Ele é usado em plantações de algodão, batata, soja e milho.

Vendido pela Bayer, outro item polêmico da lista é o fungicida Carbendazim, que está fora do mercado europeu desde 2016. Entre os malefícios do ingrediente ativo está a possibilidade de causar defeitos genéticos, prejudicar a fertilidade e o feto, além de ser muito tóxico para corpos d’água, segundo o relatório da Campanha Contra os Agrotóxicos. O produto também está na lista da PAN por poder causar alterações do DNA e ser tóxico para o sistema reprodutivo.

No Brasil, as vendas do Carbendazim chegaram a 4,8 mil toneladas em 2018, segundo o Ibama. Em dezembro do ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deu início a reavaliação desse ingrediente ativo, para decidir se o produto continua ou não no mercado. O processo é lento, e pode demorar mais de uma década, como ocorreu recentemente com o Glifosato, que teve a registro renovado após 11 anos de reavaliação. Enquanto isso, pode continuar sendo vendido. Ele é usado em culturas de feijão, soja, trigo e laranja.

O relatório pede que o Governo da Alemanha aprove um decreto proibindo a exportação de ingredientes ativos de agrotóxicos que não são permitidos na União Europeia. “Não temos dados sobre qual empresa produz as substâncias importadas e nem para quais países essas substâncias são exportadas”, explica a pesquisadora alemã Lena Luig, da rede Inkota, que faz parte do relatório.
Syngenta lucra bilhões vendendo agrotóxicos perigosos para países pobres, diz estudo

No ano passado, a organização não governamental Public Eye, da Suíça, divulgou o relatório “Lucros altamente perigosos – Como a Syngenta ganha bilhões vendendo agrotóxicos altamente perigosos”. O estudo mostra que agrotóxicos considerados altamente perigosos são usados intensamente em países de baixa e média renda, embora sejam banidos na Suíça, país-sede da Syngenta.

Com base em dados exclusivos da Phillips McDougall, empresa líder em inteligência do agronegócio, o relatório da Public Eye estima que a Syngenta tenha arrecadado cerca de US$ 3,9 bilhões com a venda de agrotóxicos altamente perigosos em 2017, o que representa mais de 40% de suas vendas naquele ano.

Cerca de dois terços dessas vendas foram feitas em países de baixa e média renda, tendo o Brasil como maior mercado.

“51 dos 120 ingredientes ativos de agrotóxicos do portfólio da Syngenta não estão autorizados em seu país de origem, a Suíça, e dezesseis deles foram banidos devido ao impacto na saúde humana e no meio ambiente. Mesmo retirados do mercado natal, a Syngenta continua a vendê-los em demais países”, diz o relatório.

O estudo apresenta 10 ingredientes ativos vendidos pela empresa no Brasil que são banidos na União Europeia e aparecem na lista de altamente perigosos da Pan.

Um deles é o herbicida Atrazina, quarto agrotóxico mais usado do Brasil – foram 28,7 mil toneladas em 2018, segundo o Ibama.

O produto, usado em culturas de cana-de-açúcar, milho e sorgo, foi banido da União Europeia por causar distúrbios endócrinos, afetando o sistema hormonal. “A atrazina tem sido proibida na Suíça e na UE por muitos anos devido à sua ampla e duradoura contaminação das fontes de água potável”, completa e Carla Hoinkes, pesquisadora de agricultura da Public Eye e uma das autoras do estudo.

Outro líder de vendas da lista é o Paraquate, sexto agrotóxico mais usado no Brasil, com 13,1 mil toneladas. O produto é proibido na Suíça desde 1989 e na União Europeia desde 2017, devido à alta toxicidade. “O Paraquate é tão tóxico que a ingestão acidental de um único gole pode matar. Ele é proibido em mais de 55 países, mas a Syngenta continua a vendê-lo onde ainda é permitido”, explica Carla.

A Anvisa decidiu em 2017 que o Paraquate deveria ser retirado do mercado brasileiro. Ele deve ser totalmente proibido a partir de 22 de setembro deste ano. Mas há um forte lobby contrário capitaneado pelo agronegócio, que até formou uma “força-tarefa Paraquate” para tentar reverter a decisão.

Um dos principais produtos da Syngenta, o inseticida Tiametoxam, não tem os dados de vendas divulgados devido ao segredo comercial. Inseticida da família dos neonicotinóide, ele é fatal para polinizadores. “O tiametoxam da Syngenta, assim como o Imidacloprida da Bayer [que vendeu 10 mil toneladas no Brasil em 2018], são dois inseticidas neonicotinóides ‘matadores de abelhas’ que foram proibidos nos campos europeus e suíços em 2018, após uma longa batalha legal. Segundo a FAO e a OMS, uma quantidade crescente de evidências sugere que os inseticidas neonicotinóides ‘estão causando efeitos nocivos às abelhas e a outros insetos benéficos em larga escala’”, conta Carla.
Empresas negam riscos

Empresas produtoras de agrotóxicos não enxergam problema em vender no Brasil produtos proibidos na Europa.

Para a Basf, existem grandes diferenças em culturas, solo, clima, pragas e práticas agrícolas em todo o mundo. “Pragas diferentes requerem soluções diferentes e todos os produtos da Basf são extensivamente testados, avaliados e aprovados pelas autoridades competentes de cada país, seguindo os procedimentos de aprovação oficiais e legais estabelecidos nos respectivos países antes de serem comercializados”, explica a empresa em nota.

A Basf afirma também que por razões de mercado optou por não renovar o registro de alguns ingredientes ativos na Europa. “Em muitos casos, o ingrediente ativo não é renovado ou submetido a registro na Europa porque a incidência de pragas, doenças e plantas daninhas em um clima temperado não é justificada ou porque não há cultura de importância econômica”, explica. Dos 12 ingredientes da Basf citados pelo estudo, apenas um, o Saflufenacil, nunca foi solicitado para entrar no mercado europeu. Os demais, ou nunca foram autorizados, ou acabaram saindo do mercado após reavaliações.

Já a Bayer diz que o simples fato de um produto para proteção de culturas não ser aprovado na UE “de maneira alguma determina a sua segurança” e “tampouco se trata de dois pesos e duas medidas”.

“Nossas exigências internas de segurança garantem que nossos produtos atendam ao padrão mínimo global em todos os lugares, independentemente de quão desenvolvido e rigoroso seja o sistema regulador de cada país. Desde 2016, a Bayer se comprometeu a vender apenas produtos de proteção de cultivos cujos ingredientes ativos estejam registrados em, pelo menos um, país da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)”, disse em nota.

A Syngenta diz que é importante observar as particularidades da agricultura em cada lugar do mundo, considerando as distintas culturas plantadas e as diferentes condições a que são expostas, bem como o tipo de pragas. “Produtos usados em nosso país, de clima tropical e com alta pressão de pragas e doenças, podem não ser tão necessários em países onde o inverno rigoroso – muitas vezes marcado pela incidência de neve – reduz naturalmente a pressão das pragas. Ou seja, se não houver demanda por determinado defensivo, não há a necessidade de registro ou renovação do registro do produto naquele país”, diz.

Segundo a CropLife Brasil, associação que representa empresas produtoras de agrotóxicos como Bayer, Basf e Syngenta, o relatório não reconhece que o uso correto de defensivos agrícolas é um ponto crítico na determinação da toxicidade de um pesticida para o usuário, suas famílias e consumidores. “As condições agrícolas em relação à flora, fauna e clima em diferentes países resultam em grande variedade de insetos/pragas, plantas daninhas e doenças que afetam as plantas. Isso significa que diferentes pesticidas estarão disponíveis para agricultores europeus e agricultores de outras regiões. Assim, o fato de um produto para proteção de culturas não ser aprovado na UE de maneira alguma determina a sua segurança”, diz em nota.

Para Carla Hoinkes, casos de necessidades agronômicas diferentes existem, mas são poucos. “Na maioria dos casos está provado que a União Européia baniu ou restringiu severamente o uso de um pesticida, ou grupo de pesticidas, devido a preocupações com o meio ambiente ou com a saúde humana”, explica.

A pesquisadora cita os exemplos do Fipronil, Paraquate, Atrazina e Tiametoxam. “Assim, empresas como a Syngenta ou a Bayer estão, de fato, usando ‘double standards’ entre países, decorrentes de regulamentações mais fracas ou implementações deficientes em certos contextos políticos, para continuar vendendo pesticidas altamente perigosos que foram proibidos em seus próprios territórios, e que foram proibidos porque são agudamente tóxicos para os seres humanos, matam abelhas, persistem na água potável ou são suspeitos de causar câncer, defeitos de nascença ou outras doenças crônicas”.

A reportagem procurou o Ministério da Agricultura e questionou se a pasta acredita que há riscos em comercializar produtos proibidos na União Europeia e se essas proibições são levadas em conta durante a avaliação dos agrotóxicos. De acordo com a pasta, o Brasil é “soberano no estabelecimento de suas regras regulatórias” e possui capacidade técnica para análise de agrotóxicos. “Para serem aqui sejam comercializados significa que foram analisados rigorosamente pelo MAPA, ANVISA e IBAMA, tendo sido aprovados por cada um desses órgãos de acordo com as respectivas competências”, informou. Confira a íntegra da resposta do Ministério da Agricultura.

As empresas também questionam os critérios da PAN para denominar agrotóxicos como altamente perigosos. São avaliados a toxicidade aguda, danos crônicos à saúde, periculosidade ao meio ambiente e listagem em convenções e acordos internacionais para regulamentação de agrotóxicos. Atualmente, a lista da PAN engloba 310 ingredientes ativos.

A Basf diz que conceitos de ongs como da PAN “impõem restrições além das previstas pelos órgãos governamentais reconhecidos internacionalmente, como FAO e OMS”. A empresa ainda afirma que “são os órgãos reguladores de cada país os melhores julgadores das necessidades de suas regiões”.

Já a Syngenta diz que a lista da PAN “não é reconhecida por nenhuma organização nacional ou internacional”. Completa dizendo que a Public Eye, responsável pelo relatório sobre a empresa, “busca minar a agricultura de inovação, sem a qual os alimentos seriam menos disponíveis, mais caros e menos seguros”.

Alan Tygel da Campanha Contra os Agrotóxicos relembra que a lista da PAN é feita com base em critérios definidos em 2006 por dois órgãos ligados à Organização das Nações Unidas, a OMS e a FAU. “Esses dois órgãos definiram os critérios, mas nunca fizeram uma lista de quais agrotóxicos são esses. A parte muito interessante e importante da PAN é justamente dar nome a esses agrotóxicos altamente perigosos”, explica.

Confira a íntegra das respostas da Basf, Bayer, Syngenta e Crop Life.

Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos no Brasil. A cobertura completa está no site do projeto.


in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 19/06/2020

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Sem a Floresta Amazônica, agronegócio e geração de energia entram em colapso no Brasil


Ultrapassar o ponto de inflexão que transformaria a Floresta Amazônica em uma savana seria “catastrófico” para os principais setores da economia brasileira, alertam especialistas. Os impactos alcançariam sobretudo o agronegócio e a geração de energia, e poderiam repercutir na segurança alimentar internacional.

A abundância natural de água no bioma amazônico beneficia com regularidade a agricultura, o transporte de commodities pelos rios brasileiros e a produção de energia elétrica em inúmeras usinas ao longo dos rios que cortam a vasta região. Agora, porém, o ciclo hidrológico da Amazônia está sob ameaça.

A reportagem é de Shanna Hanbury, publicada por Mongabay, 26-04-2020.

A água sempre foi o sangue que dá vida à floresta tropical. Ela se infiltra no solo e nos aquíferos, flui pelos rios, sobe pelas árvores e se desloca pelo céu. O Rio Amazonas, alimentado por seus afluentes, derrama impressionantes 17 bilhões de toneladas de água no Oceano Atlântico por dia. E, num dia de sol, as árvores da região lançam outras 20 bilhões de toneladas no ar por meio da evaporação – um fluxo de umidade apelidado de “rios voadores”. É assim que a floresta úmida garante o regime pluviométrico em enormes áreas da América do Sul, inclusive nas sedentas metrópoles brasileiras.

Os cientistas há tempos vêm alertando, porém, que, se passarmos do limiar crítico – um ponto de inflexão causado pelas mudanças climáticas regionais e globais, o aumento do desmatamento e a intensificação dos incêndios florestais –, as florestas podem começar a se autodestruir. Estudos revelam que há risco de até 70% da Floresta Amazônica se transformar em área seca e degradada de savana ou vegetação rasteira num prazo de 50 anos.

Principais pontos de degradação florestal na Amazônia em 2019. (Foto: MAAP com dados de UMD GLAD, Hansen UMD Google USGS NASA e MAAP)


Ponto de inflexão deve impactar ecossistemas e economias

A Floresta Amazônica e sua biodiversidade dependem de uma quantidade assombrosa de chuva para prosperar. Por isso, o agravamento das secas afeta boa parte da economia brasileira, baseada em commodities. A morte da maior floresta tropical do planeta teria imensas repercussões econômicas para o agronegócio e as usinas hidrelétricas. A Mongabay conversou com importantes cientistas que estudaram os efeitos de uma mudança épica no maior ciclo hidrológico do mundo. O cenário é preocupante.

Em primeiro lugar, alguns rios importantes da Bacia Amazônica – Xingu, Tapajós e Madeira entre eles – podem ter sua vazão reduzida drasticamente na estação seca, o que não impactaria apenas projetos ambiciosos de hidrelétricas, mas também operações de mineração que dependem das usinas para obter energia. Além disso, os cursos d’água se tornariam menos navegáveis para o transporte de minério e soja. As economias regionais seriam igualmente afetadas, prejudicando comunidades indígenas e tradicionais que dependem dos rios para pescar, beber água e se deslocar.

Área desmatada (em km2) em períodos entre agosto e janeiro nos últimos 12 anos. (Foto: Inpe)



No longo prazo, a economia do país pode sofrer bastante se medidas não forem tomadas com urgência para evitar o ponto de inflexão. Em 2019, as exportações agrícolas do Brasil ultrapassaram US$ 80 bilhões, com soja e açúcar entre os produtos mais vendidos. O agravamento das secas pode fazer com que as lavouras de soja em áreas de baixo risco sejam reduzidas 40% em 50 anos.

Para reverter a tendência atual, é preciso conter as emissões globais de carbono e o desmatamento na Amazônia, e adotar a partir de já um ambicioso plano de reflorestamento, analisa o cientista climático Carlos Nobre.

Em vez disso, o governo brasileiro caminha na direção contrária. No primeiro ano do presidente Jair Bolsonaro no poder, o desmatamento atingiu seu maior nível em 11 anos. Programas de contenção do problema tiveram pessoal e verbas cortados, assim como foram flexibilizadas regras para a exportação de madeira. Os primeiros levantamentos atestam que a derrubada da floresta continua em ritmo acelerado em 2020.

Embora as políticas de desenvolvimento radicais de Bolsonaro para a Amazônia possam fazê-lo ganhar pontos com agropecuaristas em busca de lucro rápido, tais iniciativas podem incentivar o aumento do desmatamento e apressar o ponto de inflexão – o que seria devastador para a economia brasileira.

“O Brasil deveria ser o país que mais luta [para proteger a Amazônia], porque é quem tem mais a perder”, diz Nobre.

Rio Tapajós, um dos milhares de cursos d’água que alimentam a Bacia Amazônica. (Foto: © Teresa Moreira /TNC)


Ciclo da água na Amazônia está mudando

Há dez anos, um produtor rural brasileiro com 30 anos de experiência na Amazônia, em Rondônia, aproximou-se do pesquisador e climatologista Marcos Costa, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, e perguntou: “Por que a cada ano a chuva começa um pouco mais tarde?”

Sem ter uma resposta, Costa decidiu investigar. Sua pesquisa confirmou a observação do produtor: em média, a estação chuvosa da Amazônia estava começando a cada ano mais tarde, uma tendência impulsionada pelo desmatamento regional e pelas mudanças climáticas. Hoje, em áreas desmatadas do sul da Amazônia, o atraso sazonal das chuvas varia entre 15 e 30 dias em comparação com 1980, um período de apenas 40 anos de diferença.

E as coisas estão piorando. De acordo com Costa, também a precipitação total começa a diminuir. Um estudo da Nasa publicado em novembro revelou que a atmosfera sobre a Amazônia vem ficando mais seca nas últimas duas décadas. “Esperamos algo ainda mais sombrio no futuro”, comenta Costa. “E isso tem impacto sobre a agricultura e a geração de energia elétrica.”

A seca não é a única tendência nociva. Apesar de a Amazônia ter sofrido uma estiagem severa em 2005, 2010 e 2015, a região teve marcas históricas de inundações em 2009, 2012 e 2014. As cheias danificaram propriedades, afogaram rebanhos, inundaram plantações, aumentaram o escoamento de agrotóxicos para os rios, impactaram a pesca, aumentaram surtos de doenças e pioraram o isolamento de comunidades ribeirinhas dependentes do transporte fluvial. Na verdade, eventos extremos de variação climática – de secas a chuvas recordes – estão se tornando mais comuns.

Apesar das temporadas de inundação, a Amazônia revela-se cada vez mais árida, a tal ponto que árvores que precisam de muita água estão sendo substituídas por um tipo de vegetação adaptada à seca. Isso significa menos evaporação, argumenta Yadvinder Malhi, especialista em florestas tropicais da Universidade de Oxford. E, eventualmente, “uma vez que começarmos a ultrapassar esse ponto de inflexão, veremos um declínio nos rios e uma intensificação de eventos climáticos extremos”.

Obra de usina hidrelétrica no Rio Teles Pires, no Mato Grosso. (Foto: © Fernando Lessa/TNC)


O déficit hidrelétrico

As usinas hidrelétricas fornecem hoje dois terços da eletricidade do Brasil, convertendo-se em um dos principais motores do bem-estar financeiro do país. Em 2019, 31,6% da energia hidrelétrica produzida foi destinada ao setor industrial – inclusive para operações de mineração na Amazônia e em outras regiões. E 4,7% da energia gerada teve como destino o agronegócio.

Mas a variabilidade do clima já reduz a produção de energia, aponta um relatório de 2019 da Associação Internacional de Energia Hidrelétrica. O quão drástica é a redução depende do estudo que se analisa. À medida que a seca aumenta e a vazão dos rios diminui, o potencial hidrelétrico do Brasil pode cair mais de 80% antes de 2070. As hidrelétricas da Amazônia podem perder em média 40% de seu potencial de geração de energia até o fim do século, de acordo com outras análises.

Uma pesquisa liderada pelo renomado hidrologista Eduardo Martins, da Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura, comparou resultados de 25 estudos e, embora houvesse alguma variabilidade, todos apontavam para a mesma direção: as hidrelétricas da Amazônia devem perder 20% da vazão dos rios até 2070, e até 60% em 2100 nos cenários climáticos mais pessimistas.

Conforme a estação seca se estende, o número de meses de chuva em que as hidrelétricas podem operar é reduzido, com consequências econômicas importantes para o país e as grandes empresas. A mega-hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, que custou US$ 9,5 bilhões (R$ 42,7 bi) e só entrou em operação total em 2019, já está enfrentando uma redução na vazão sazonal do Rio Xingu devido ao clima mais seco e ao desmatamento rio acima. Essa tendência deve piorar, fazendo com que a hidrelétrica se torne economicamente inviável – um destino que poderia condenar a mina de ouro Belo Sun, que precisa de quantidades imensas de eletricidade para operar.

Barragem principal de Belo Monte, em 27 de dezembro de 2019. (Foto: Palácio do Planalto)



O Brasil enfrenta um paradoxo energético, avalia Roberto Schaeffer, especialista em economia da energia na Universidade de São Paulo: “Países que são muito dependentes de fontes renováveis [como a energia hidrelétrica] podem ter de depender mais de combustíveis fósseis no futuro para lidar com os efeitos das mudanças climáticas.”

Uma possível prova desta afirmação: em novembro, a operadora da usina de Belo Monte, a Norte Energia, pediu autorização da Agência Nacional de Energia Elétrica para construir usinas termoelétricas ao lado da mega-hidrelétrica.

De acordo com as estimativas de Schaeffer, o setor energético brasileiro precisará investir outros US$ 50 bilhões (R$ 224 bi) até 2035 para compensar as perdas de capacidade hidrelétrica por conta das mudanças climáticas. Parte desse montante servirá à compra de eletricidade de outras fontes, entre elas, provavelmente, o carvão mineral, gerador de gases de efeito estufa. “A ideia será tentar compensar a perda de energia a um custo mínimo”, explica.

A energia solar e a eólica são alternativas possíveis, mas também necessitam de novos investimentos – e apresentam desafios próprios. A fonte solar, por exemplo, só fica disponível de 10 a 12 horas por dia, e deve ser armazenada em baterias caras. “Algumas dessas baterias precisam de metais pesados, então teremos um aumento de demanda por mineração, com todos os seus impactos negativos”, acrescenta Costa. “O mundo tem uma abundância de materiais para baterias de telefones celulares e laptops. Se esses minérios começarem a ser necessários para armazenar a nossa energia, isso pode gerar outro grande problema no longo prazo.”

Mais um efeito dominó: se a seca fizer com que mais fazendeiros precisem irrigar suas plantações, a medida poderá reduzir ainda mais a vazão dos rios, piorando de vez a crise hidrelétrica.

“Diante das alterações no regime hidrológico, o Brasil voltará à energia suja em vez da energia limpa?”, pergunta a economista Monica de Bolle, do Instituto Peterson de Economia Internacional. Para preencher o vácuo hidrelétrico, fontes de energia não-renováveis, como o gás natural ou o carvão mineral, podem voltar a ser usadas, de acordo com o plano decenal oficial de energia do Brasil.

Mesmo quando o bioma amazônico chegar ao ponto de inflexão e a vazão dos rios diminuir, com hidrelétricas produzindo menos megawatts, ainda haverá grande demanda por energia. No Brasil, as mudanças climáticas resultam na elevação das temperaturas, sobretudo nas ilhas de calor urbanas, levando à necessidade de maior uso de eletricidade para alimentar sistemas de ar condicionado e refrigeração.

Brasil: uma economia agropecuária dependente da natureza O ponto de inflexão da Amazônia tornará a agricultura mais difícil e mais cara, um investimento mais arriscado, alertam os cientistas. Áreas rurais consideradas hoje de baixo risco, por exemplo, passarão a ser empreendimentos de alto ou médio risco nas próximas décadas, de acordo com pesquisa do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas.

Carlos Nobre explica: o Brasil “já está no limite de produtividade [agrícola]. Se perdemos o controle do aquecimento global, estaremos falando de o Cerrado ficar inviável para a agricultura”. O Cerrado hoje é a fronteira agrícola que se expande mais rapidamente no país – um “rolo compressor” de soja, algodão, milho e pecuária, com exportações vitais para a economia brasileira.

A questão é que esse rolo compressor econômico – que fornece grandes quantidades de soja para alimentar o gado na União Europeia, China e Reino Unido – depende de chuva abundante.

Nobre ressalta que o ponto de virada da Amazônia não é meramente uma abstração futura: seus impactos já estão sendo sentidos no Mato Grosso, importante produtor de soja cujo território cobre parte da Amazônia e do Cerrado. O estado já passa por mudanças alarmantes no ciclo hidrológico.

Grandes companhias do agronegócio estão percebendo essas mudanças: a Amaggi, maior produtora de soja privada do mundo, já observa “mais concentração de chuva numa quantidade menor de dias”. A companhia está buscando tecnologia para mitigar os impactos dessa nova condição. “O mercado procurou cultivos que são resistentes a períodos mais longos de seca”, anuncia a empresa. “São recursos tecnológicos que permitem a adaptação às mudanças de precipitação que podem ocorrer entre uma safra e outra, mantendo os níveis de produção.”

A adaptação, porém, só funcionará até certo ponto. Os cientistas alertam que o aumento da seca intensificará o risco econômico dos fazendeiros. “Até agora, já houve um declínio de 100 milímetros de chuva. Quando se tem 1.500 milímetros por ano, perder 100 não parece ser um absurdo. Mas vai piorar”, diz o pesquisador Eduardo Assad, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). “Se a precipitação anual cair para 1.000 milímetros, a produção ainda é possível, mas as lavouras ficarão muito vulneráveis.”
A pesquisa de Assad na Embrapa levou a novas variedades de soja adaptadas à falta d’água e a mais calor, mas o melhoramento genético é um caminho longo e caro – e não é suficiente por si só. “Ok, podemos desenvolver uma soja que tolere mais 2 oC. Mas, e se a temperatura aumentar 3 oC?”, pergunta ele. Novos modelos de sensibilidade climática que ainda estão sendo testados para o ano que vem mostram um possível aumento de temperatura em 2100 de até 5,6 oC. Ninguém ainda desenvolveu uma soja que sobreviva a esse calor.

O desmatamento agrava o problema. “O efeito de uma savanização da Amazônia seria catastrófico. Não faz sentido falar em aumentar a produção agrícola com a taxa de desflorestamento que temos hoje”, conclui Assad. A derrubada das árvores seca rapidamente a paisagem, intensificando a estiagem e diminuindo a produção.

O economista Juliano Assunção, diretor-executivo da Climate Policy Initiative Brasil, concorda. “O desmatamento representa uma imensa perda de recursos. O interesse econômico [do agronegócio] nas áreas [desmatadas] é muito limitado”, diz ele, argumentando que um quarto das áreas desmatadas recentemente do Brasil é mais tarde abandonado. “O desmatamento é uma atividade ilegal com muito pouca importância econômica e baixa produtividade”, explica Assunção, embora seja uma atividade que beneficie muito os especuladores de terra e os grileiros.

A diminuição da capacidade agrícola brasileira não é uma preocupação apenas nacional. A população global deve explodir para mais de 8 bilhões em 2023 – daí a necessidade de produzir mais alimentos. Um estudo prevê que a demanda por alimentos deve aumentar em até 98% até 2050, e um Brasil mais seco terá bastante dificuldade em atender esses novos consumidores.

O ponto de inflexão da Amazônia, que intensificará as secas, não prejudicará apenas o agronegócio em grande escala, mas também os agricultores familiares brasileiros que alimentam a maior parte do país. (Foto: © Kevin Arnold / TNC)


Menos água e mais demanda

Fazendeiros que buscam se adaptar à redução das chuvas por meio da irrigação não terão facilidade no novo cenário. Hoje, menos de 10% das plantações brasileiras são irrigadas, mas, com a redução das chuvas e o crescimento da demanda, é provável que aumentem as tensões e conflitos por água. “Todos estarão competindo por um recurso escasso”, diz Roberto Schaeffer.

A região Norte do Brasil já testemunhou um aumento da irrigação de mais de 240% entre 2006 e 2017. E, obviamente, quanto mais água deixa os rios e vai para as grandes plantações, menos sobrará para a geração de energia hidrelétrica, o transporte e as comunidades tradicionais da floresta.

À medida que os rios perdem volume, especialistas avaliam que os pequenos produtores serão os que provavelmente mais irão perder no “cabo de guerra” pela água da Amazônia. “Ficou mais difícil plantar culturas que demandam um período de crescimento completo de seis meses. Então os agricultores têm de optar por cultivos de ciclo mais curto. A vida ficou bem mais precária”, comenta Antônio José Bentes, coordenador da Sociedade para a Pesquisa e Proteção do Meio Ambiente (Sapopema), uma pequena ONG com sede na Amazônia.

Bentes viu agricultores optando por cultivos que não dependem de um ciclo completo de seis meses, como a abóbora, para se adaptarem à chuva intermitente. Como pode ser cultivada em poucos meses, a produção quase dobrou no último ano. “A produção de abóbora na região de Santarém aumentou de 100 toneladas em 2018 para 180 toneladas em 2019”, diz.

“Com mudanças nos ciclos das chuvas, alteram-se os padrões de colheita e plantio. Grandes fazendeiros podem se adaptar, mas não é fácil para pequenos agricultores que usam a terra para sobreviver”, explica Monica deBolle. Mudanças no clima atingirão com impacto bem maior as famílias pobres e podem causar uma crise de migração semelhante à que está acontecendo na América Central.

Em 27 de novembro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro celebra o término oficial da construção da mega-hidrelétrica de Belo Monte, inaugurando sua última turbina. Especialistas temem que a usina nunca se torne economicamente viável devido ao agravamento da seca e ao desmatamento a montante do Rio Xingu, que reduziu sua vazão. (Foto: Palácio do Planalto)


A morte da Amazônia: riscos políticos e sociais

Em seu primeiro ano no governo, Bolsonaro negou a mudança climática; seu ministro das Relações Exteriores acredita que o aquecimento global é uma farsa para que o poder econômico deixe o Ocidente e a China possa conquistar a dominação mundial. O governo também fechou os olhos para a ciência e o risco iminente do ponto de inflexão da Amazônia.

O presidente até agora mostrou desdém pela política ambiental brasileira do passado – um exemplo para o mundo, pois reduziu drasticamente o desmatamento – e é um defensor ferrenho do desenvolvimento agressivo da Amazônia, com planos para expandir a mineração, a exploração de petróleo e o agronegócio em reservas indígenas, e de construir novas estradas e hidrelétricas, iniciativas que poderão antecipar rapidamente esse ponto de virada irreversível para o equilíbrio do bioma.

Alguns produtores agrícolas pragmáticos veem como prioridade a estabilidade do clima regional, mas outros ignoram a ciência, considerando-a um mito, diz Juliano Assunção. “Todos os dias eu me pergunto por que [partes do lobby ruralista] estão lutando contra a agenda ambiental com tanta força, uma vez que ela é tão relevante para a agricultura”, diz ele. “É difícil entender qual é a lógica por trás disso. A agenda ambiental está associada a atividades econômicas relevantes. Então, por que estão desorganizando uma política que funciona, a um custo tão alto para a sua reputação?”

De fato, esse custo tende a ser bastante alto. A agenda antiambiental praticamente inegociável de Bolsonaro pode atrapalhar o fechamento do maior acordo comercial do mundo, entre o Mercosul e a União Europeia. A oposição ao pacto comercial está crescendo na UE, por causa dos incêndios do ano passado na Amazônia e das políticas do presidente.

Evitar os riscos climáticos é “de interesse do agronegócio”, resume Marcos Costa, do IPCC. Mudanças nos padrões de precipitação sazonal e total podem impactar a produtividade, os lucros e até a segurança alimentar, escreveu ele em um artigo de 2019.

Narrativas ambientais arriscadas – como o ponto de inflexão da Amazônia ou os planos de desenvolvimento de Bolsonaro para a região – podem também afastar investidores do agronegócio e aumentar a ameaça de boicotes de consumidores internacionais, acredita Monica de Bolle. “A força geopolítica brasileira é o meio ambiente”, diz ela. “Até pouco tempo atrás, estávamos numa posição privilegiada.”

O atual problema de imagem do Brasil não é apenas ambiental, mas também social e econômico, acrescenta de Bolle, observando que uma porção considerável da população amazônica vive do extrativismo. “Com a floresta morrendo, a subsistência acaba. O que acontecerá com essas pessoas numa situação em que a floresta começar a desaparecer?”

A aparente abundância de água da Amazônia alimenta a floresta, a agricultura e a infraestrutura energética do Brasil. Mas, a menos que algo seja feito, essa fonte poderá secar, devastando a economia do país. (Foto: Rhett A. Butler /Mongabay)



A tendência é a de que as posições extremas de Bolsonaro gerem uma reação ainda mais dura dentro e fora do país nos próximos três anos de seu mandato, à medida que ele faz pressão para explorar a floresta, colocando o Brasil e o planeta em risco.

De acordo com um relatório recente do Observatório do Clima, nenhuma das metas brasileiras para o Acordo do Clima de Paris de 2015 foi cumprida – e as metas de desmatamento de 2020 já foram ultrapassadas. “O que acontece no Brasil não fica só no Brasil”, alerta a ONG. A morte da Amazônia pode ter impactos globais, com o Brasil sozinho colocando em risco o principal objetivo do Acordo de Paris: estabilizar o aquecimento global em 1,5oC acima dos níveis pré-industriais.

Não é um desafio que cabe apenas aos brasileiros, diz Roberto Schaeffer. “Não se trata só do que pode ser feito aqui. Mesmo que o Brasil reduza violentamente suas emissões [contendo o desmatamento], e a China e a Europa não reduzam as suas, isso não resolve o problema.” A mudança climática global continuará empurrando a Amazônia rumo ao ponto de inflexão, só que mais lentamente.

“O que o mundo pode fazer [para salvar a Amazônia] é simples: cumprir as promessas feitas por aquelas pessoas respeitáveis de terno e gravata no Acordo de Paris”, conclui.

(EcoDebate, 29/04/2020) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]