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quinta-feira, 25 de junho de 2020

É alto o risco de surgir uma nova pandemia a partir da Amazônia, avalia cientista



Carlos Nobre, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza, afirma que desmatamento e perturbação da vida selvagem são alguns dos elementos que originaram o novo coronavírus

Por Renato Santana

Fogo, desmatamento, fragmentação florestal, perturbação da vida selvagem, aumento do fluxo de humanos (garimpeiros, madeireiros, desmatadores, etc) entre áreas perturbadas de floresta e concentrações urbanas são elementos que criam sérias condições para o surgimento de pandemias a partir da Amazônia.

“Os fatores de risco estão todos lá. Não ter surgido uma epidemia massiva na região da floresta até hoje é pura sorte”, avalia Carlos Nobre, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN) e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). “A falta de fiscalização e de políticas públicas contribuem para o surgimento de doenças, pois favorecem a retirada de animais de seu habitat e o contato não planejado com humanos”, explica.

Desde que os primeiros casos do novo coronavírus começaram a surgir, muito tem se discutido sobre a origem da pandemia. Um estudo publicado na revista Nature Medicine aponta que são altas as probabilidades de que a doença tenha relação com a transmissão animal. Até o momento, suspeita-se que os primeiros casos na Ásia tenham sido transmitidos a partir de morcegos ou pangolins.

O consumo de carne silvestre é um hábito bastante presente também no Brasil. Estudo publicado na Revista de Ciências da Saúde na Amazônia apontou que, no município de Rio Branco (AC), 78% dos entrevistados disseram consumir este tipo de produto. “A paca (Cuniculus paca) e o tatu (Gênero Euphractus) são as espécies mais procuradas”, diz a pesquisa, segundo a qual “pratos preparados à base de carnes silvestres em restaurantes apresentaram uma aceitabilidade de 100%”.

E não é apenas no Acre. No estado do Amazonas, o consumo de tartarugas-da-amazônia tem colocado a espécies em situação de vulnerabilidade. A alta demanda pela carne desses animais estimula a caça e o tráfico ilegais, criando uma crise de saúde pública, uma vez que boa parte das vezes o produto não tem origem adequada.

“Estamos no século das zoonoses. A cada quatro meses, a ciência identifica um microrganismo, bactéria, vírus ou protozoário que vira patógeno no corpo humano. A maioria, felizmente, não se propaga. Mas outros têm grande capacidade de contágio, como o novo coronavírus”, explica Nobre.

Para Malu Nunes, mestre em Conservação da Natureza e Ciências Florestais e diretora executiva da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, é preciso garantir formas eficazes de proteger a floresta. “A sociedade como um todo precisa entender que a degradação e o tráfico de animais estão diretamente relacionados à propagação de doenças. É uma questão de saúde pública. Há bem pouco tempo, ninguém imaginaria a humanidade passando por uma pandemia tão grave e com consequências tão sérias. Se não houver meios que impeçam o desmatamento e outros problemas ambientais, será cada vez mais comum termos de lidar com este e outros tipos de consequências, igualmente perturbadores”, diz Malu.

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 24/06/2020

terça-feira, 23 de junho de 2020

Commodities agrícolas foram as grandes responsáveis por incêndios na Amazônia, segundo estudo


Pesquisa aponta frigoríficos e produtores de soja com maior risco de serem associados a queimadas
Commodities agrícolas foram as grandes responsáveis por incêndios na Amazônia, segundo estudo que cruza dados da Nasa com cadeias de suprimentos das empresas

por Marcelo Coppola*

Em agosto do ano passado, imagens dos incêndios na Amazônia atraíram a atenção do mundo todo. Chefes de governo, organizações multilaterais, ambientalistas e celebridades manifestaram preocupação com o futuro da maior floresta tropical do planeta. “A Amazônia precisa ser protegida”, disse António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). “Nossa guerra contra a natureza precisa acabar”, tuitou a ativista Greta Thunberg.

O tamanho real do desastre ambiental só foi conhecido em janeiro, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apresentou um balanço final dos incêndios que atingiram a floresta. Em 12 meses, ocorreram 89 mil focos de incêndio na região, um aumento de 30% em relação a 2018. Um crescimento preocupante, apesar de o número ter ficado abaixo da série histórica (109 mil).

No auge da crise, o presidente Jair Bolsonaro lançou suspeita sobre ONGs que atuam na região. E o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) culpou a temporada mais seca, quando, na verdade, choveu mais do que no ano anterior. Pesquisadores do bioma atribuem os incêndios, porém, a outros fatores.

A especulação fundiária é hoje um dos grandes vilões da floresta amazônica. Trata-se de um negócio de alta rentabilidade que envolve a invasão de terras públicas, a derrubada e retirada das árvores mais valiosas e depois, por meio de correntes presas a tratores, a derrubada da vegetação mais baixa. Passadas algumas semanas, período necessário para a secagem do material destruído, basta pôr fogo ao que antes era uma floresta. É hora então de espalhar as sementes para criar o pasto, à espera do comprador.

“É dinheiro fácil. O invasor de terra pública que gasta R?$ 1 mil para derrubar e colocar fogo em um hectare consegue vender o mesmo hectare por até R$ 2,7 mil”, afirma Raoni Rajão, pesquisador da Amazônia e professor do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). As queimadas costumam ser feitas no período mais seco da Amazônia, entre julho e outubro.

A floresta não queima apenas por conta da grilagem de terras. Para ampliar o pasto, muitos produtores põem fogo em áreas contíguas às suas propriedades ou destroem a mata existente dentro de suas próprias fazendas. O Código Florestal estabelece que, nos imóveis localizados na Amazônia Legal, 80% da mata nativa deve ser preservada. Há ainda as queimadas feitas por agricultores, indígenas e povos tradicionais com o propósito de renovar o pasto ou a área de cultivo, uma prática que tem impacto bem menor sobre o bioma, mas que pode sair do controle e provocar destruição em grandes áreas.

Levantamento realizado pelo MapBiomas — iniciativa que reúne universidades, organizações sociais e empresas de tecnologia – revela a dimensão das práticas criminosas citadas acima. De acordo com o estudo, realizado a partir do cruzamento de imagens de satélites com o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e outros bancos de dados oficiais, 99% do desmatamento realizado no Brasil no ano passado foi ilegal. Dos 12 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa destruída, a maior parte está localizada no Cerrado e na Amazônia.

Pecuária e soja

Um estudo recente realizado pela Chain Reaction Research (CRR) [http://chainreactionresearch.com/wp-content/uploads/2020/05/Deforestation-driven-fires-in-Brazil-Indonesia.pdf] , uma coalizão de consultorias ambientais europeias e americanas, ajuda a entender um pouco mais os interesses por trás dos incêndios ocorridos no ano passado na Amazônia. Os pesquisadores cruzaram imagens dos incêndios, feitas por satélites da Nasa, com a localização dos maiores frigoríficos da região, como JBS e Marfrig, e grandes silos de soja, controlados por gigantes como Bunge e Cargill.

O sistema de monitoramento da agência espacial americana detectou 417 mil focos de fogo nas “zonas potenciais de compra” da JBS e da Marfrig de julho a outubro do ano passado, um número que representa 42% de todos os incêndios ocorridos no Brasil no período – foram 981 mil, segundo a Nasa. Os focos de incêndios no entorno das duas empresas representam quase a metade (47%) do total detectado (885 mil) nas proximidades dos dez maiores frigoríficos da região.

As zonas potenciais de compra dos matadouros foram estabelecidas pelo Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) em 2017, a partir de entrevistas feitas com 157 frigoríficos da Amazônia Legal. Entre outras informações, essas empresas revelaram a distância máxima que percorrem para comprar os animais para abate. Os frigoríficos maiores uma distância máxima de 360 km a partir de suas instalações. Os menores, que têm certificados para atuar apenas dentro do Estado, compram gado a uma distância máxima de 153 km.

No caso da soja, a Chain Reaction Research estabeleceu um raio de 25 km a partir dos silos das maiores empresas do setor como área de sua cadeia de suprimentos. O levantamento indicou que as queimadas ocorridas no entorno da Bunge e da Cargill (39,9 mil) superaram a soma dos focos de incêndio registrados nas proximidades dos outros oito maiores traders do setor.

O levantamento não faz nenhuma acusação a esses conglomerados. “O objetivo foi mostrar a ocorrência de uma enorme quantidade de incêndios nas proximidades dessas empresas, o que não implica o envolvimento direto delas com essas práticas. Mas faz com que tenham de resolver as suspeitas que recaem sobre sua cadeia de suprimentos”, diz Marco Túlio Garcia, pesquisador da Aidenviroment e um dos autores do estudo, que analisou também os incêndios na Indonésia, onde as suspeitas recaem sobre a produção de óleo de palma.

“O desmatamento na Amazônia, causa principal dos incêndios, traz riscos a essas empresas. Nos últimos anos, os grandes investidores internacionais colocaram essas questões no centro de sua pauta. Elas não estão mais restritas a debates entre ambientalistas”, completa Tim Steinweg, coordenador de pesquisa da Chain Reaction Research. Um exemplo dessa preocupação do mercado global foi dado em dezembro último pela Nestlé, quando suspendeu suas compras de soja da Cargill, por suspeita de que o produto tenha origem em áreas desmatadas da Amazônia.

Reportagem recente do jornal The Guardian revelou que bancos e outras instituições financeiras britânicas investiram nos últimos anos mais de US? 2 bilhões nas principais empresas brasileiras de carne que atuam na Amazônia. Por conta do desmatamento, estudam reconsiderar seu apoio se essas companhias não mostrarem progressos no rastreamento de seus fornecedores. Gigantes do setor de alimentos manifestam a mesma preocupação. Em dezembro, a Nestlé suspendeu suas compras de soja da Cargill, por suspeita de que o produto tenha origem em áreas desmatadas da floresta.

Estudiosos avaliam que o setor de pecuária traz hoje mais riscos para a Amazônia do que a indústria da soja, que hoje ameaça mais o Cerrado. A imagem dos produtores do grão melhorou a partir do pacto, batizado de “moratória da soja”, firmado em 2006 com entidades ambientalistas, pelo qual se comprometeram a não comprar a commodity de áreas desmatadas no bioma. O acordo contou depois com o apoio do governo federal.

O setor pecuário carrega irregularidades dos mais variados tipos. Entre elas, animais que nascem em áreas desmatadas, muitas vezes embargadas pelo Ibama, e que são vendidos para pequenos e médios produtores. Depois da engorda, são comprados legalmente pelos grandes frigoríficos. Os sistemas de controle não conseguem pegar o vício de origem. “É uma cadeia muito complexa. Não existe um sistema que permita rastrear cada animal desde o início, e os frigoríficos não parecem interessados em implantar um monitoramento desse tipo”, lamenta Ritaumaria Pereira, diretora executiva do Imazon. “Há um ditado na região que traduz essa triste realidade. Boi não morre de velho na Amazônia. Sempre vai ter alguém para comprá-lo, independentemente de onde venha”, afirma a engenheira agrônoma.

Menos floresta, menos chuva

Para muitos especialistas, falta visão estratégica ao governo brasileiro e aos produtores rurais em relação à Amazônia, o principal ativo ambiental do país. Paulo Moutinho, pesquisador sênior do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), lembra que a floresta funciona como uma espécie de bomba de vapor d’água que, transportado por meio dos chamados rios voadores, irriga o Centro-Oeste e o Centro-Sul do Brasil. A destruição coloca em risco esse sistema de irrigação. “Ao desmatar, é como se fizéssemos um furo nesse regador, que garante o sucesso de boa parte da produção agrícola brasileira.” De acordo com estudo da Agência Nacional de Águas (ANA) e do IBGE, 92,5% da água consumida pela agricultura brasileira vêm das chuvas. Apenas 7,5% são de sistemas de irrigação.

Os riscos à floresta amazônica são reais, de acordo os cientistas. O bioma já perdeu cerca de 17% (dados de 2017) de sua vegetação nativa. Se esse percentual superar 20%/25%, corre grande risco de entrar em um processo de savanização, segundo estudo publicado há dois anos pelo pesquisador brasileiro Carlos Nobre e pelo americano Thomas Lovejoy. Na década anterior, os mesmos pesquisadores falavam que o tipping point (ponto sem volta) aconteceria quando fossem atingidos os 40% de destruição. Refizeram os cálculos em razão da aliança mortal entre desmatamento, incêndios e mudança climática.

Especialistas ouvidos pela reportagem acreditam que não é preciso destruir nenhum hectare a mais para aumentar a produção agropecuária. Bastaria aproveitar os 12 milhões de hectares que foram desmatados e abandonados na Amazônia, áreas que poderiam ser recuperadas. “Você tem muitas áreas que estão abertas e, com incentivo adequado, poderiam ser exploradas”, afirma Paulo Moutinho, do IPAM. Ritaumaria Pereira, do Imazon, concorda: “Além da regeneração dessas áreas, precisamos de políticas públicas para incentivar o aumento da produtividade da pecuária, que hoje é muito baixa, cerca de um animal por hectare”.

O que dizem as empresas

Em nota, a JBS reclama do fato de não ter sido procurada pelos pesquisadores da Chain Reaction Research. A empresa questiona os critérios técnicos do estudo e diz adotar uma abordagem de tolerância zero em relação ao desmatamento em toda a sua cadeia de fornecimento. “Todos as fazendas fornecedoras de gado da JBS na região amazônica são monitoradas por meio de imagens de satélite e dados georreferenciados da propriedade. Portanto, fornecedores que utilizaram fogo para desmatar a floresta serão detectados pelo sistema de monitoramento da Companhia e bloqueados para compra de gado.”

A Marfrig afirmou que adota “uma rígida política de compra de animais, bem como um protocolo com critérios e procedimentos que são pré-requisitos para a homologação de fornecedores”. A empresa diz manter uma plataforma que monitora, por meio de um sistema de georreferenciamento e geomonitoramento socioambientais, todos os seus fornecedores. A ferramenta cruza os dados georreferenciados e documentos das fazendas com informações públicas oficiais para identificar potenciais não conformidades, “coibindo que a matéria-prima seja oriunda de fazendas que produzam carne em áreas de desmatamento ou embargadas, sobrepostas a unidades de conservação ou terras indígenas, ou mesmo que utilizem ‘trabalho escravo”’.

A Bunge disse que está comprometida com uma cadeia de suprimentos livre de desmatamento e que condena qualquer uso do fogo para o desflorestamento. “A empresa mantém rigoroso controle sobre critérios socioambientais em suas operações em todo o Brasil. As ações incluem verificações diárias às listas públicas de não conformidades do Ibama e do Ministério do Trabalho e Emprego, além da checagem de outros requisitos legais, e bloqueio imediato de qualquer negociação comercial, em caso de desconformidade”. De acordo com a nota, “a empresa também é signatária da Moratória da Soja, compromisso reconhecido mundialmente que proíbe a compra de soja cultivada em áreas desmatadas após 2008 na Amazônia, e do Protocolo Verde de Grãos do Pará, uma iniciativa conjunta com o Ministério Público Federal (MPF), que estabelece critérios para transações comerciais com foco em evitar a comercialização de grãos oriundos de áreas ilegalmente desmatadas”.

A Cargill afirmou que está comprometida com a proteção das florestas e da vegetação nativa de maneiras que sejam economicamente viáveis para os agricultores. “O desmatamento ilegal e incêndios deliberados na Amazônia são inaceitáveis e, juntamente com outras empresas do setor, continuaremos a fazer parcerias com comunidades locais, agricultores, governos, ONGs e nossos clientes para encontrarmos soluções que preservem esse importante ecossistema”, afirma a nota da Cargill. “Fazemos parte da Moratória da Soja na Amazônia desde 2006, quando assinamos um acordo voluntário com organizações industriais e ambientais de não comprar soja de terras que foram desmatadas após 2008 neste bioma. Esse esforço contribuiu para o declínio de 80% no desmatamento na Amazônia na última década e foi estendido indefinidamente em 2016.”

* Marcelo Coppola é jornalista e foi editor na revista Época. Trabalhou também no jornal Folha de S. Paulo e na revista Veja.

Colaboração de Clóvis Saint-Clair, Diálogo Brasil

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 23/06/2020

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Multinacionais vendem no Brasil toneladas de agrotóxicos ‘altamente perigosos’ proibidos em seus países

agrotóxicos
Imagem: ENSP


Estudos mostram que as empresas Basf, Bayer e Syngenta aproveitam da legislação permissiva para faturar alto vendendo pesticidas altamente perigosos que já foram banidos na Europa

Por Pedro Grigori, Agência Pública/Repórter Brasil


Além de ser o maior consumidor de agrotóxico no mundo, estudos mostram que a legislação permissiva torna o Brasil o pote de ouro das principais companhias agroquímicas do planeta. Dois trabalhos publicados no último ano revelaram que as multinacionais Bayer, Basf e Syngenta encontram no Brasil um dos seus principais mercados, já que conseguem colocar nas prateleiras produtos proibidos de serem comercializados até mesmo na União Europeia (UE), onde ficam suas sedes.

O grau de toxicidade desses pesticidas é preocupante: 22 deles foram classificados pela Rede de Ação contra Agrotóxicos (PAN, na sigla em inglês) como altamente perigosos (highly hazardous pesticides, na sigla em inglês, ou HHPs).Essa classificação é feita a partir de critérios desenvolvidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) por serem tóxicos para o sistema reprodutivo, poderem causar alterações no DNA, por serem cancerígenos ou fatais para abelhas e outros polinizadores.

Mesmo banidos no exterior, esses produtos rendem milhões no Brasil. Foram vendidas mais de 63 mil toneladas em 2018 de apenas 10 desses 22 agrotóxicos, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Os outros 12 produtos não entraram no relatório por questões de sigilo comercial, o Ibama divulga apenas dados sobre ingredientes ativos que têm três ou mais empresas fabricantes. O relatório também não especifica quantos desses agrotóxicos vendidos eram das empresas Bayer, Syngenta e Basf.
Quem são as empresas?

Em 2017, o mercado mundial de agrotóxicos movimentou US$ 34,4 bilhões, de acordo com a FAO/ONU. E é um setor aglomerado cada vez mais nas mãos de poucas empresas. Com sede na Suíça, a Syngenta faz parte do grupo ChemChina, líder mundial do setor. Em segundo lugar fica a empresa alemã Bayer, que apresentou grande crescimento em 2018 após adquirir a Monsanto, produtora do herbicida Round Up, à base de glifosato, o agrotóxico mais vendido do mundo. O pódio fica completo com a alemã Basf. As três empresas juntas controlam 54,7% de todo setor de produção de agroquímicos global.







Em 2018, 36,7% dos ingredientes ativos vendidos pela Bayer e 24,9% pela Basf no mundo todo eram altamente perigosos, de acordo com a definição da PAN.

As informações constam no estudo “Agrotóxicos Perigosos. Bayer e Basf – um negócio global com dois pesos e duas medidas”. O relatório, produzido pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos, a rede INKOTA, a Fundação Rosa Luxemburgo, a MISEREOR e a organização sul-africana Khanyisa, traz dados das vendas das empresas alemãs em países em desenvolvimento.

Segundo o estudo, os agrotóxicos altamente perigosos têm maior facilidade de chegar ao mercado de países do Sul global devido aos processos mais flexíveis de registro de agrotóxicos. Um exemplo é o Brasil: 44% das substâncias registradas aqui são proibidas na União Europeia, mostrou um relatório de julho do ano passado feito pelo ex-presidente da Associação Brasileira da Reforma Agrária (ABRA), Gerson Teixeira Alan Tygel, porta-voz da Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, explica que o ponto de partida do estudo foi a Alemanha. “A Alemanha é o segundo maior exportador de agrotóxicos do mundo, por conta dessas duas grandes empresas produtoras. A Alemanha exporta 233 ingredientes ativos. Desses, nove são banidos na União Europeia, mas produzidos dentro da própria Alemanha e depois exportados”, conta. “Dos 233 ingredientes ativos exportados pela Alemanha, 62 são considerados altamente perigosos”, completa.

O estudo mostra que a metade dos 24 ingredientes vendidos no Brasil pela Bayer e Basf são altamente perigosos.

Um desses é o Fipronil, um ingrediente ativo utilizado em inseticidas vendidos pela Basf. O produto entrou na lista da PAN por ser fatal para abelhas. Nos anos 90, foi culpado por uma morte maciça de abelhas na França. Em 2017, milhões de ovos de galinha acabaram contaminados por Fipronil na Bélgica e na Holanda. No mesmo ano, o produto foi banido de toda a União Europeia por representar “um alto risco agudo para as abelhas quando usado para o tratamento de sementes de milho”, segundo a Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA).

No Brasil, o inseticida foi apontado por apicultores como o principal responsável pela morte de mais de 500 milhões de abelhas entre 2018 e 2019. Só em 2018, segundo o Ibama, foram comercializados 1,6 mil toneladas do pesticida no país. Ele é usado em plantações de algodão, batata, soja e milho.

Vendido pela Bayer, outro item polêmico da lista é o fungicida Carbendazim, que está fora do mercado europeu desde 2016. Entre os malefícios do ingrediente ativo está a possibilidade de causar defeitos genéticos, prejudicar a fertilidade e o feto, além de ser muito tóxico para corpos d’água, segundo o relatório da Campanha Contra os Agrotóxicos. O produto também está na lista da PAN por poder causar alterações do DNA e ser tóxico para o sistema reprodutivo.

No Brasil, as vendas do Carbendazim chegaram a 4,8 mil toneladas em 2018, segundo o Ibama. Em dezembro do ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deu início a reavaliação desse ingrediente ativo, para decidir se o produto continua ou não no mercado. O processo é lento, e pode demorar mais de uma década, como ocorreu recentemente com o Glifosato, que teve a registro renovado após 11 anos de reavaliação. Enquanto isso, pode continuar sendo vendido. Ele é usado em culturas de feijão, soja, trigo e laranja.

O relatório pede que o Governo da Alemanha aprove um decreto proibindo a exportação de ingredientes ativos de agrotóxicos que não são permitidos na União Europeia. “Não temos dados sobre qual empresa produz as substâncias importadas e nem para quais países essas substâncias são exportadas”, explica a pesquisadora alemã Lena Luig, da rede Inkota, que faz parte do relatório.
Syngenta lucra bilhões vendendo agrotóxicos perigosos para países pobres, diz estudo

No ano passado, a organização não governamental Public Eye, da Suíça, divulgou o relatório “Lucros altamente perigosos – Como a Syngenta ganha bilhões vendendo agrotóxicos altamente perigosos”. O estudo mostra que agrotóxicos considerados altamente perigosos são usados intensamente em países de baixa e média renda, embora sejam banidos na Suíça, país-sede da Syngenta.

Com base em dados exclusivos da Phillips McDougall, empresa líder em inteligência do agronegócio, o relatório da Public Eye estima que a Syngenta tenha arrecadado cerca de US$ 3,9 bilhões com a venda de agrotóxicos altamente perigosos em 2017, o que representa mais de 40% de suas vendas naquele ano.

Cerca de dois terços dessas vendas foram feitas em países de baixa e média renda, tendo o Brasil como maior mercado.

“51 dos 120 ingredientes ativos de agrotóxicos do portfólio da Syngenta não estão autorizados em seu país de origem, a Suíça, e dezesseis deles foram banidos devido ao impacto na saúde humana e no meio ambiente. Mesmo retirados do mercado natal, a Syngenta continua a vendê-los em demais países”, diz o relatório.

O estudo apresenta 10 ingredientes ativos vendidos pela empresa no Brasil que são banidos na União Europeia e aparecem na lista de altamente perigosos da Pan.

Um deles é o herbicida Atrazina, quarto agrotóxico mais usado do Brasil – foram 28,7 mil toneladas em 2018, segundo o Ibama.

O produto, usado em culturas de cana-de-açúcar, milho e sorgo, foi banido da União Europeia por causar distúrbios endócrinos, afetando o sistema hormonal. “A atrazina tem sido proibida na Suíça e na UE por muitos anos devido à sua ampla e duradoura contaminação das fontes de água potável”, completa e Carla Hoinkes, pesquisadora de agricultura da Public Eye e uma das autoras do estudo.

Outro líder de vendas da lista é o Paraquate, sexto agrotóxico mais usado no Brasil, com 13,1 mil toneladas. O produto é proibido na Suíça desde 1989 e na União Europeia desde 2017, devido à alta toxicidade. “O Paraquate é tão tóxico que a ingestão acidental de um único gole pode matar. Ele é proibido em mais de 55 países, mas a Syngenta continua a vendê-lo onde ainda é permitido”, explica Carla.

A Anvisa decidiu em 2017 que o Paraquate deveria ser retirado do mercado brasileiro. Ele deve ser totalmente proibido a partir de 22 de setembro deste ano. Mas há um forte lobby contrário capitaneado pelo agronegócio, que até formou uma “força-tarefa Paraquate” para tentar reverter a decisão.

Um dos principais produtos da Syngenta, o inseticida Tiametoxam, não tem os dados de vendas divulgados devido ao segredo comercial. Inseticida da família dos neonicotinóide, ele é fatal para polinizadores. “O tiametoxam da Syngenta, assim como o Imidacloprida da Bayer [que vendeu 10 mil toneladas no Brasil em 2018], são dois inseticidas neonicotinóides ‘matadores de abelhas’ que foram proibidos nos campos europeus e suíços em 2018, após uma longa batalha legal. Segundo a FAO e a OMS, uma quantidade crescente de evidências sugere que os inseticidas neonicotinóides ‘estão causando efeitos nocivos às abelhas e a outros insetos benéficos em larga escala’”, conta Carla.
Empresas negam riscos

Empresas produtoras de agrotóxicos não enxergam problema em vender no Brasil produtos proibidos na Europa.

Para a Basf, existem grandes diferenças em culturas, solo, clima, pragas e práticas agrícolas em todo o mundo. “Pragas diferentes requerem soluções diferentes e todos os produtos da Basf são extensivamente testados, avaliados e aprovados pelas autoridades competentes de cada país, seguindo os procedimentos de aprovação oficiais e legais estabelecidos nos respectivos países antes de serem comercializados”, explica a empresa em nota.

A Basf afirma também que por razões de mercado optou por não renovar o registro de alguns ingredientes ativos na Europa. “Em muitos casos, o ingrediente ativo não é renovado ou submetido a registro na Europa porque a incidência de pragas, doenças e plantas daninhas em um clima temperado não é justificada ou porque não há cultura de importância econômica”, explica. Dos 12 ingredientes da Basf citados pelo estudo, apenas um, o Saflufenacil, nunca foi solicitado para entrar no mercado europeu. Os demais, ou nunca foram autorizados, ou acabaram saindo do mercado após reavaliações.

Já a Bayer diz que o simples fato de um produto para proteção de culturas não ser aprovado na UE “de maneira alguma determina a sua segurança” e “tampouco se trata de dois pesos e duas medidas”.

“Nossas exigências internas de segurança garantem que nossos produtos atendam ao padrão mínimo global em todos os lugares, independentemente de quão desenvolvido e rigoroso seja o sistema regulador de cada país. Desde 2016, a Bayer se comprometeu a vender apenas produtos de proteção de cultivos cujos ingredientes ativos estejam registrados em, pelo menos um, país da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)”, disse em nota.

A Syngenta diz que é importante observar as particularidades da agricultura em cada lugar do mundo, considerando as distintas culturas plantadas e as diferentes condições a que são expostas, bem como o tipo de pragas. “Produtos usados em nosso país, de clima tropical e com alta pressão de pragas e doenças, podem não ser tão necessários em países onde o inverno rigoroso – muitas vezes marcado pela incidência de neve – reduz naturalmente a pressão das pragas. Ou seja, se não houver demanda por determinado defensivo, não há a necessidade de registro ou renovação do registro do produto naquele país”, diz.

Segundo a CropLife Brasil, associação que representa empresas produtoras de agrotóxicos como Bayer, Basf e Syngenta, o relatório não reconhece que o uso correto de defensivos agrícolas é um ponto crítico na determinação da toxicidade de um pesticida para o usuário, suas famílias e consumidores. “As condições agrícolas em relação à flora, fauna e clima em diferentes países resultam em grande variedade de insetos/pragas, plantas daninhas e doenças que afetam as plantas. Isso significa que diferentes pesticidas estarão disponíveis para agricultores europeus e agricultores de outras regiões. Assim, o fato de um produto para proteção de culturas não ser aprovado na UE de maneira alguma determina a sua segurança”, diz em nota.

Para Carla Hoinkes, casos de necessidades agronômicas diferentes existem, mas são poucos. “Na maioria dos casos está provado que a União Européia baniu ou restringiu severamente o uso de um pesticida, ou grupo de pesticidas, devido a preocupações com o meio ambiente ou com a saúde humana”, explica.

A pesquisadora cita os exemplos do Fipronil, Paraquate, Atrazina e Tiametoxam. “Assim, empresas como a Syngenta ou a Bayer estão, de fato, usando ‘double standards’ entre países, decorrentes de regulamentações mais fracas ou implementações deficientes em certos contextos políticos, para continuar vendendo pesticidas altamente perigosos que foram proibidos em seus próprios territórios, e que foram proibidos porque são agudamente tóxicos para os seres humanos, matam abelhas, persistem na água potável ou são suspeitos de causar câncer, defeitos de nascença ou outras doenças crônicas”.

A reportagem procurou o Ministério da Agricultura e questionou se a pasta acredita que há riscos em comercializar produtos proibidos na União Europeia e se essas proibições são levadas em conta durante a avaliação dos agrotóxicos. De acordo com a pasta, o Brasil é “soberano no estabelecimento de suas regras regulatórias” e possui capacidade técnica para análise de agrotóxicos. “Para serem aqui sejam comercializados significa que foram analisados rigorosamente pelo MAPA, ANVISA e IBAMA, tendo sido aprovados por cada um desses órgãos de acordo com as respectivas competências”, informou. Confira a íntegra da resposta do Ministério da Agricultura.

As empresas também questionam os critérios da PAN para denominar agrotóxicos como altamente perigosos. São avaliados a toxicidade aguda, danos crônicos à saúde, periculosidade ao meio ambiente e listagem em convenções e acordos internacionais para regulamentação de agrotóxicos. Atualmente, a lista da PAN engloba 310 ingredientes ativos.

A Basf diz que conceitos de ongs como da PAN “impõem restrições além das previstas pelos órgãos governamentais reconhecidos internacionalmente, como FAO e OMS”. A empresa ainda afirma que “são os órgãos reguladores de cada país os melhores julgadores das necessidades de suas regiões”.

Já a Syngenta diz que a lista da PAN “não é reconhecida por nenhuma organização nacional ou internacional”. Completa dizendo que a Public Eye, responsável pelo relatório sobre a empresa, “busca minar a agricultura de inovação, sem a qual os alimentos seriam menos disponíveis, mais caros e menos seguros”.

Alan Tygel da Campanha Contra os Agrotóxicos relembra que a lista da PAN é feita com base em critérios definidos em 2006 por dois órgãos ligados à Organização das Nações Unidas, a OMS e a FAU. “Esses dois órgãos definiram os critérios, mas nunca fizeram uma lista de quais agrotóxicos são esses. A parte muito interessante e importante da PAN é justamente dar nome a esses agrotóxicos altamente perigosos”, explica.

Confira a íntegra das respostas da Basf, Bayer, Syngenta e Crop Life.

Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos no Brasil. A cobertura completa está no site do projeto.


in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 19/06/2020