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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Projeto do Código Florestal: Grave afronta à inteligência nacional, artigo de José Eli da Veiga
A maioria dos 410 deputados que aprovaram o projeto de lei sobre a proteção da vegetação nativa (PLC-30) nem teve chance de perceber o tamanho dos disparates nele introduzidos. Certamente devido à balbúrdia em que transcorreu o processo de votação, favorecendo os míopes interesses de um subsetor econômico muito específico: o da pecuária de corte de expansão horizontal, concentrada na franja impropriamente chamada de “fronteira agrícola”.
Com certeza o Senado honrará sua missão revisora, colocando em primeiro lugar os interesses estratégicos da nação, ao contrário do que ocorreu com a Câmara na lastimável noite de 24 de maio. Muitas das distorções do PLC-30 foram bem enfatizadas em recentes audiências públicas de juristas e pesquisadores científicos, inspirando as 174 emendas apresentadas à CCJ e à CCT por 16 senadores, quase todas com o intuito de evitar inúmeros perigos de tão insensata marcha reversa. Provavelmente outras ainda serão propostas em mais duas comissões que vão anteceder o plenário: a de agricultura e a de meio ambiente.
Lista circunstanciada dos absurdos do PLC-30 está nas 28 páginas de “Propostas e considerações” das duas maiores sociedades científicas brasileiras (SBPC e ABC), divulgadas há uma semana. Confirma que são quatro as principais aberrações que demandam minucioso exame do Senado: a) drástica redução das áreas de preservação permanente (APP); b) inviabilização da imprescindível flexibilidade das reservas legais (RL); c) contrabando de milhões de imóveis rurais sob o manto de pretensa solidariedade aos “pequenos produtores”; d) inepta escolha de julho de 2008 como data para o perdão de infrações.
A balbúrdia da votação não permitiu que a maioria dos deputados se desse conta dos disparates da PLC-30
Pela legislação em vigor, o conjunto das áreas de preservação permanente (APP) deveria corresponder a 15% do território nacional, totalizando 135 milhões de hectares (Mha). Todavia, existe um déficit de 55 Mha – quase todo invadido por indecentes pastagens – que será mais do que “consolidado” pelas brutais reduções das exigências de conservação de matas ciliares, ripárias, de encostas, de topos de morro e de nascentes. Algo inteiramente desnecessário, pois a bovinocultura poderá ser incomparavelmente mais eficiente e produtiva com muito menos do que os exageradíssimos 211 Mha que atualmente ocupa (78% da área da agropecuária). Bastará um pouco de profissionalismo e bem menos especulação fundiária.
O surgimento de mercados estaduais de compensações de reservas legais (RL) seria um grande passo à frente, principalmente para os produtores cujas fazendas não dispõem de terras de baixa aptidão. É completamente irracional destinar solos de boa qualidade à recuperação de vegetação nativa, ou mesmo reflorestamento com exóticas. Nada melhor, portanto, do que remunerar detentores de terras marginais para que eles constituam condomínios de reservas. Com a imensa vantagem de que elas não estariam dispersas em pequenos fragmentos isolados, alternativa infinitamente superior para a conservação da biodiversidade. É trágico, portanto, que o PLC-30 tenha feito uma opção preferencial por forte redução dessas áreas, em vez de viabilizar o surgimento desses mercados estaduais de compensações.
Tão ou mais escandalosa é a tentativa de desobrigar todos os imóveis rurais com áreas inferiores a quatro módulos fiscais sob o pretexto de ajudar “pequenos produtores”. A maior parte dos imóveis desse tamanho são chácaras e sítios de recreio de famílias urbanas de camadas sociais privilegiadas. Nesse ponto, os deputados inadvertidamente legislaram em benefício próprio, já que muitos deles, assim como seus parentes e amigos, têm propriedades desse tipo.
Se o objetivo fosse realmente favorecer produtores rurais de pequeno porte, bastaria que o PLC-30 não fizesse letra morta da lei 11.326, promulgada pelo presidente Lula em julho de 2006, após um decênio de experiência acumulada pelo tardio Programa de Fortalecimento da AGRICULTURA FAMILIAR (PRONAF), criado em julho de 1996 por decreto do presidente FHC.
Para delimitar essa categoria sem contrabandear casas de campo de urbanos do andar de cima, ou de quaisquer proprietários com vários imóveis, a lei considera agricultores e empreendedores familiares apenas os que praticam atividades no meio rural atendendo simultaneamente a quatro requisitos: a) não detenham a qualquer título área maior do que quatro módulos fiscais; b) utilizem predominantemente mão de obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; c) tenham renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; d) dirijam seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.
Finalmente, mas não menos relevante, é lembrar que a Constituição não reconhece direito adquirido em matéria ambiental, desautorizando qualquer data para perdões por desmatamentos ilegais que seja posterior ao primeiro ato regulamentador da Lei de Crimes Ambientais: 21 de setembro de 1999.
José Eli da Veiga, professor da pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP) e do mestrado profissional em sustentabilidade do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), escreve mensalmente às terças. www.zeeli.pro.br
Artigo originalmente publicado no Valor Econômico.
EcoDebate, 19/10/2011

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