por Latuff para o Dìncao cedido ao Humor Político
O caso da demarcação das terras indígenas no Mato Grosso do Sul ou em qualquer outro estado do país não está fora do contexto desse avanço e fortalecimento do agronegócio
[Brasil de Fato] No início do século XX, o Brasil decidiu expandir suas fronteiras agrícolas, fortalecendo a sua posição de país dependente, exportador de matérias primas. Era necessário então avançar pelo interior, abrir caminhos para a pecuária e a agricultura. Aí entrou em cena o Marechal Rondon, que sonhava com uma convivência pacífica entre índios e brancos: “morrer sim, matar, jamais”. Mas, esse legado de humanidade se perdeu no tempo. “Pacificados,” os indígenas chamados a se “civilizar”, a entrar no ritmo da sociedade branca, foram perdendo sua identidade, suas raízes, sua cultura. Outros, renitentes, foram alojados em reservas, como se fossem bichos exóticos, com suas terras diminuídas e tutelados pelo estado. O território “pacificado” ganhou escrituras, donos, cercas. E aos verdadeiros donos do território restou a nostalgia de um tempo em que eles podiam viver à sua maneira.
Agora, durante o mais novo ciclo de desenvolvimento dependente brasileiro, que teve início no governo Lula, é justamente essa dita fronteira agrícola que busca se expandir outra vez e, de novo, às custas dos povos originários ou dos camponeses sem terra. Mas, quando falamos em agricultura não está em questão aquela que produz comida para a mesa dos brasileiros, e sim a de exportação, que na linguagem empresarial ganhou o pomposo nome de agronegócio. Pois esse negócio (o agrobussines) representa mais de 22% da riqueza total produzida no país, o que não é pouca coisa. Só a China tem importado mais de 380 milhões de dólares em produtos agrícolas, bem como os Estados Unidos que encosta nessa mesma cifra.
Segundo informações do governo federal (http://www.brasil.gov.br/sobre/economia/setores-da-economia/agronegocio – dados de 2011) , os produtos de maior destaque que saem do país são as carnes (US$ 1,14 bilhão); os produtos florestais (US$ 702 milhões); o complexo soja – grão, farelo e óleo (US$ 685 milhões); o café (US$ 605 milhões) e o complexo sucroalcooleiro – álcool e açúcar (US$ 372 milhões). Nota-se que a maior parte da exportação diz respeito a grãos (que no geral servem para alimentar animais) e madeira, dois legítimos representantes da monocultura destruidora de terra.
Cálculos do governo apontam para o sucessivo crescimento da produção de grãos, principalmente a soja, que tem aumentado a área plantada em 2,3% ao ano. Não é por acaso, então, que o Mato Grosso do Sul seja o principal foco de disputa de terra e de violência contra os indígenas. É justamente a região centro-oeste a responsável por 45% da produção de soja. E é lá também onde existe uma grande parcela do povo autóctone, esperando demarcação de suas terras.
A partir do ano de 2003 outra fronteira começou a se alargar na plantação de soja, atualmente outro espaço de violentas disputas, a da região da caatinga e a parte nordestina da Amazônia. Também não é sem razão que o governo esteja levando adiante obras gigantescas como as Hidrelétricas na Amazônia e a transposição do Rio São Francisco. Tudo isso é para atender a demanda dessas plantações. E é sempre bom frisar: não é comida para o povo, é produto de exportação. Vai para fora do país.
Não bastassem os projeto mirabolantes para beneficiar o agronegócio, o governo também disponibiliza, através do Plano Safra, crédito a juros abaixo do mercado. Ou seja, os mais ricos pagam menos pelos empréstimos, enquanto os pequenos, que plantam a comida que vai para a mesa da população, amargam juros altos e falta de apoio. Também está em andamento o Plano Estratégico do Setor Sucroalcooleiro, que visa ampliar a área de cana-de-açúcar para a produção do etanol. mais uma vez, não é comida o que essa gente produz.
A lógica é a de sempre: garantir rentabilidade para poucos donos de terra, reforçar o sistema agroexportador, apoiar a ação de multinacionais predadoras, e seguir o caminho de dependência econômica, já que produtos agrícolas de baixo valor agregado tornam a economia bastante vulnerável. Mas, ao que parece isso não importa. O que vale é seguir investindo nos grandes produtores para manter a balança em superávit, mesmo que isso precise custar soberania, destruição ambiental e morte daqueles que ousam “atrapalhar” o esquema.
Assim, na mesma semana em que indígenas são assassinados no Mato Grosso do Sul, o governo anuncia mais um pacote de 136 bilhões de reais para a agricultura empresarial (o agronegócio). É a completa rendição.
O caso da demarcação das terras indígenas no Mato Grosso do Sul ou em qualquer outro estado do país não está fora do contexto desse avanço e fortalecimento do agronegócio. Os fazendeiros querem mais terras e não estão dispostos a permitir que seres que eles consideram “inúteis” vivam sua cultura de equilíbrio ambiental e desenvolvimento fora do ritmo capitalista. Para aqueles que apenas conseguem enxergar os números da bolsa de Nova Iorque, a população indígena é um entrave que precisa ser retirado do caminho a qualquer custo. Para isso contratam jagunços e mandam bala. Fazem ouvidos moucos ao clamor que se levanta.
Ajudados pela mídia comercial, dominada pela elite que verdadeiramente governa o país, esses empresários rurais conseguem também entrar na cabeça das gentes, fertilizando um discurso racista, preconceituoso e violento. Pessoas simples, trabalhadores, gente que deveria ser solidária aos indígenas na sua luta pelo direito de viverem em suas terras, acabam reproduzindo o mantra diariamente veiculado na televisão: que os índios são vagabundos, que não querem trabalhar, que não precisam de terra, que vão vender os terrenos, que vão explorar a madeira, e assim por diante. “Compram” a mentira diuturnamente produzida e tornam-se cúmplices de mais um massacre da população originária, verdadeira dona desse lugar.
Não bastasse isso o governo federal se curva aos interesses da classe dominante e emprega a força bruta para atacar manifestações legítimas dos povos indígenas e das gentes que apoiam a causa originária.
O conflito que temos visto se explicitar nas estradas do Mato Grosso do Sul, na Amazônia e até aqui, no Morro dos Cavalos, nada mais é do que a luta de classe, típica do capitalismo. De um lado, o latifúndio defendendo seus interesses, do outro, os explorados, buscando vida digna. E, no meio disso tudo uma nação alienada pela constante deformação informativa da mídia comercial que transforma em inimigo aqueles que são as vítimas do sistema.
A saída para esse imbróglio é a luta mesma. Nada será concedido pelo governo, que já se ajoelhou diante do agronegócio. Agora, o desafio é tirar o véu do conflito, escancarar as causas, abrir os olhos dos entorpecidos pela mídia. E isso, sabemos, é coisa difícil demais. Mas, também não é coisa que deva nos imobilizar. Pelo contrário. Nessa hora em que os irmãos indígenas enfrentam as balas e a morte, é preciso apoio concreto e efetivo. O bom mesmo seria que as gentes saíssem para a rua em solidariedade à luta indígena. Enquanto isso não acontece vamos fazendo o trabalho de formiga, levando outra informação, para que as cabeças possam compreender o direito dos indígenas.
Não é possível que os sindicatos e os movimentos sociais não se levantem em apoio. Não é possível que as gentes brasileiras não se co/movam com o drama de uma gente que perdeu tudo o que era seu e que hoje vive confinada em reservas. O que fizeram para serem prisioneiros do estado e da sociedade? Que crime cometeram além de estarem aqui, criando suas famílias, quando os invasores chegaram? Por que precisam pagar pelo fato de existirem e quererem seguir vivendo sua cultura?
O que farias tu se alguém chegasse na tua casa e te arrancasse dali sob o pretexto de que é preciso passar por ali o progresso – mas não de todos, apenas de alguns? Porque o direito do agronegócio é maior do que o de uma comunidade inteira?
Essas são perguntas que não querem e não podem calar. Todo apoio aos irmãos indígenas!
Elaine Tavares é jornalista.
Artigo originalmente publicado no Brasil de Fato e indicado por Ruben Siqueira, CPT/BA, para o EcoDebate, 11/06/2013
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